Ainda que a contragosto, me despertei. Olhei o relógio e marcava seis da manhã. Horário que considerei impróprio para qualquer coisa, principalmente para despertar num domingo.
Mas não pude voltar a dormir. O silencio pesou em seguida. Nos últimos meses havia me afastando tanto daquele lugar, que agora olhava aflita as paredes do meu quarto, assim como quem procura no rosto de um antigo amante o rastro do que um dia lhe pertenceu.
Não havia vontade de sair. Só queria dormir e esquecer. Mas, por uma dessas mágicas que acontecem e transformam rapidamente uma coisa em outra, percebi o delicado espetáculo do sol, que em pequenos fragmentos de luz atravessavam as frestas da janela. Então, como quem ainda reconhece o lugar, caminhei pela penumbra e abri a janela.
Havia tanta luz em meu quarto que era possível visualizar até a mais minúscula partícula de pó suspensa no ar. E toda aquela luminosidade deu lugar a um calor gostoso e acolhedor.
Regressei a cama. Com movimentos lentos e ainda desordenados tentava me acomodar entre as macias cobertas e travesseiros, mas, ainda que reconfortante e terapêutica me parecesse àquela experiência, era preciso levantar, pois um novo dia se iniciava. Foi então que num ímpeto de coragem avaliei o trajeto até o espelho, e fui. Me mirei por alguns segundos na tentativa de arrumar meu cabelo em desalinho. Corri meus dedos por entre os fios, e assim permaneci. Sem pressa, apenas acariciando e sentindo as pontas ressecadas do meu cabelo.
E talvez permanecesse assim, perdida em meus pensamentos, mirando-me no espelho sem me reconhecer, não fosse o ruído insistente do meu estômago, alertando que já era hora de descer e preparar o café. Finalizei o cabelo com uma presilha, busquei alguma coisa confortável para vestir, escovei os dentes e desci as escadas em direção à cozinha, já pensando que deveria substituir minha caneca king size de café por uma xícara single de chá. Talvez tanta cafeína estivesse prejudicando meu sono, motivo para justificar as noites mal dormidas e os despertares tempranos. Porém, antes que pudesse começar qualquer coisa, fui interrompida pelo mundo lá fora.
Não pude deixar de perceber que algo novo acontecia em meu jardim. Decidida a saber o que ocorria, fui até a porta. Era uma porta grande, dessas de duas folhas de vidro que correm de um lado ao outro. Me posicionei e apenas observei.
Fazia um silêncio profundo naquela manhã. Tão profundo que era possível escutar o mais suave movimento. Já não havia pressa. Somente silêncio e uma sensação rara.
Decidida a desvendar o mistério e não apenas observá-lo, imediatamente corri um lado da porta e já estava com os pés na varanda. Foi quando senti uma brisa leve e fresca com adorável aroma de lavanda entrando por minhas narinas, percorrendo meu corpo todo, até finalmente invadir meus pulmões. Enquanto isso, timidamente raios de sol me tocavam a pele, banhando todo meu corpo com sua luz e calor.
Tudo parecia surpreendentemente mágico e especial naquela manhã. E o mais incrível é que eu vivia naquela casa a muito tempo, porém, somente naquela manhã me dei conta que ali, em meu próprio quintal existia um lindo jardim. E me perguntava: "Se sempre esteve aqui, por que só o vejo agora"?
Depois de hibernar durante o intenso inverno, finalmente a natureza começava a renascer. O jardim parecia incrivelmente vibrante e intenso. Pássaros cantavam com extraordinária beleza, enquanto que o vento gentilmente se encarregava de levar até meus ouvidos as belas e harmoniosas melodias.
Beija-flores eram atraídos pelas mais diversas cores e néctar das flores que coloriam os canteiros. Sabiás Laranjeiras cantavam magistralmente anunciando que era chegado o tempo de acasalamento. Bem-te-vis, tico-ticos e pardais cantavam e se regozijavam saltitantes por entre árvores, arbustos e floreiras.
Tomada por um desejo intenso de assimilar tudo o que acontecia e desfrutar de toda aquela deliciosa experiência sensorial, prontamente decidi abandonar toda e qualquer tarefa matinal para tão somente aproveitar os prazeres daquela manhã.
Procurei pela cadeira mais próxima, tomei-a pelas mãos e me posicionei bem ao lado de um pequeno canteiro de lavandas que havia plantado meses atrás, que, para mim, confesso, era o meu favorito. As lavandas sempre me gostaram. Talvez porque seu aroma me remetesse a uma das poucas e boas lembranças do tempo de criança.
E ali, pela primeira vez, depois de muito tempo pude me sentir parte de alguma coisa. Me senti viva, inteira e presente. Não sei precisar o tempo que permaneci em silencio, apenas observando a vida no entorno. Só sei que foi tempo suficiente para me dar conta que outras portas deveriam se abrir, para que a vida, enfim, pudesse fluir.
Talvez naquele momento eu ainda não soubesse exatamente o que queria, porém, sabia que não poderia mais viver ao meio, partida, dividida e incompleta. Porque eu não era assim. Mas me sentia assim.
Hoje, ao pensar na atmosfera poética daquela manhã, sinto como se a vida em forma de um sopro, uma espécie de chamado viesse até meu ouvido e sussurrasse: "Desfaça-se de todos os nós. Eles apertam e sufocam. Despeça-se definitivamente de tudo aquilo que precisa deixar partir, pois só assim você poderá celebrar e aceitar o que precisa vir. Pare de fugir e esconder-se de tudo, e de todos. Liberte-se da vigília constante e irritante de que tudo seja perfeito. Liberte-se dessa vidinha rígida, chata e triste. Vidinha que só tende a se estreitar e se apagar, mais e mais, até o dia em que desapareça por completo".
No silencio permaneci. Mergulhada em meus pensamentos e refletindo sobre a única certeza que tinha: Não queria mais perder tempo buscando explicações lógicas e racionais para tudo. Não queria mais me sentir melancólica e com a triste sensação de que minha própria vida não me pertencia. Já era tempo de me libertar dos temores que em mim plantaram. Era preciso vencer minhas resistências e reavaliar minhas crenças. Sair da mesmice em que me encontrava. Porque assim como o jardim, eu também precisava florescer para novamente recolocar minha vida em movimento, deixando para trás tudo o que arrastei inutilmente ao longo da minha vida, e que agora, mais do que nunca, se fazia necessário.
Naquela manhã, ao abrir a porta que me levou até o jardim, um lembrete chegou até mim de uma forma muito sutil, mostrando-me que a vida deve ser honrada todos os dias.
Se antes eu não conseguia ver o jardim, era porque estava presa ao meu cotidiano, pois ele sempre esteve lá, esperando pacientemente por mim, assim como todo o resto. Por isso, felizes são aqueles que reconhecem os valores revelados através da fragilidade humana. Os que reconhecem que a vida pode seguir muito bem sem precisar da dureza da razão. Os que reconhecem e são capazes de evoluir através dos duros golpes que a vida nos dá, assim como são perfeitamente capazes de reconhecer e aceitar quando ela gentilmente nos quer ensinar.
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