Pular para o conteúdo principal

De volta ao começo - Dois momentos de um mesmo lugar.

Depois de nove horas de um turbulento voo de Nova Iorque a São Paulo, onde faço uma conexão a Porto Alegre, chego finalmente acompanhada de um conjunto de sintomas físicos de crescente intensidade: Cansaço, um sono suspenso graças ao incomodo das horas de voo e a espera na conexão que obviamente não saiu no horário, e somado a isso uma fome que me consome.  Desembarco, apanho minhas malas e sigo para o desembarque, onde uma prima e seu marido me esperam.  

De Porto Alegre nos dirigimos a Novo Hamburgo, cidade onde nasci - para aquele de gosto menos exigente pode até ser um bonito lugar. Li alguma vez que levamos conosco a imagem do lugar ideal, do único e verdadeiro lar. No meu caso esse não seria o lugar. Mas não há como negar. Ao voltar à cidade onde cresci, fui forçada a parar, sustentar o ar e deixá-lo brotar como se inspirasse pela primeira vez. Tal qual como no dia em que nasci. Exatamente ali.

Algumas pessoas têm lugares no plural. Ou seja, lares no plural. Eu por exemplo. Passei muitos anos de minha vida mudando de cidade, inclusive algumas vezes de país. Não por opção, mas por exigências laborais de meu ex-marido. Vivi em tantas casas diferentes que equivale a não ter lar nenhum. E mesmo que quisesse reunir partes de um todo idealizado, ainda assim não conseguiria completar uma só.

Do aeroporto a cidade o trajeto é curto. Um pouco mais de trinta minutos e chegamos. Através da janela do carro vejo árvores ressecadas pelo frio. Vejo uma língua de luz estampada no céu. O mesmo céu que já deu lugar ao escuro que foi minha vida nos anos em que ali vivi. 

Começava a entender as bases de minha origem, enquanto uma parte do meu coração tentava fazer as pazes com a outra que ali havia ficado. Uma reconciliação. Uma espécie de boas-vindas mais profunda e certamente mais humana. 

Transitar por dois momentos de um mesmo ambiente não é uma proposta fácil de ser levada a cabo. O confronto de passado e presente é ainda mais desafiador quando não escolho o que lembrar. As lembranças afloram à mínima provocação do presente.

Há um ritmo, um compasso que fica muito bem definido quando penso na minha vida ali, marcada por acontecimentos profundos e que agora me vem de maneira linear, como uma espécie de cordão que vai puxando histórias, puxando histórias, puxando histórias - o reencontro com o cenário onde se nasce guarda sempre mais memórias que realidade.

Naquela noite ao tentar dormir, pensei nos sentidos que depreendemos das coisas. Às vezes sair de casa é um fracasso, e voltar é uma redenção, ou o contrário. E só volta quem sai. Deixei a cidade pela primeira vez no final dos anos 80, quando fui morar no nordeste do Brasil. Voltei algumas vezes de férias. Mas agora era algo tão diferente das experiências engavetadas, das vozes, rostos, ruídos e movimentos das vezes passadas.

Termino minha visita à cidade e a casa de meus parentes com a alma saciada de nobres valores e meu coração em paz. Em nenhum momento senti um ambiente de intrigas, indiretas ou suspiros de decepção. Ao contrário. Cada um a seu modo, óbvio, soube respeitar minhas decisões. Me apoiaram na hora que precisei, oferecendo-me suporte afetivo, emocional e todo o acolhimento necessário para que eu pudesse sentir-me em família. 

Termino a visita aos meus parentes feliz e em paz, pois passamos momentos de muita harmonia, quando eu julgava que seria um desastre. Mas verdade seja dita: Sempre soube que cada um a sua maneira e, em diferentes tons, toca seu próprio instrumento, porém, juntos logramos tocar no mesmo tom.

 

Denise Oliveda Kirsch

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Egito, do caos ao êxtase.

  Desde os tempos de escola, minha ideia sobre o Egito foi sendo construída através da beleza e importância que o Egito Antigo tem na história da humanidade e sua civilização, pois o avanço do Egito em relação às demais civilizações da época, era notável. Muito antes dos romanos, faraós já edificavam grandes construções dando origem às primeiras versões do que seriam as Pirâmides do Egito. E em 2018, dando sequencia ao meu calendário exótico de destinos, tive o privilegio de visitar esse país tão impactante e cheio de contrastes. Desde Luxor, onde vida e morte ocupam cada uma sua margem do Rio Nilo, sendo que na margem ocidental está o Vale dos Reis e Rainhas, territórios sonhados por arqueólogos, na margem oriental está o Templo de Luxor e Karnak, que com suas colunatas imensas, que se abrem em praças e se fecham em corredores, são de tirar o folego.   Em Luxor embarcamos em um pequeno cruzeiro com duração de quatro dias pelo Rio Nilo, fonte de vida e indispensável num país que po

Patagonia Argentina, meu lugar no mundo.

  Desde que cheguei à Argentina, - e lá se vão quase oito anos -, sonhava em conhecer a Patagônia, região de aproximadamente 930 mil quilômetros quadrados que abrange uma vasta área no extremo sul do país, mas que também possui uma pequena extensão além da fronteira com o Chile. Caracterizada pelo clima frio, baixas temperaturas, nevadas, glaciares espetaculares e majestosas montanhas, a região é conhecida e muito procurada justamente por essas incríveis paisagens. Mas também há pelo caminho muitas planícies áridas, pastagens e desertos, cenário desconhecido para a maioria, pois somente desfruta dessa paisagem quem decide se aventurar de carro. E foi o que fizemos. Iniciamos nossa viagem no dia 04 de janeiro de 2016, partindo de Buenos Aires, a bordo de um confortável Toyota Corolla. E quanto mais nos afastávamos de Buenos Aires, mais fascinada eu ficava com as paisagens panorâmicas. Ora eram grandes desertos, ora uma natureza exuberante e sedutora. E essa alteridade fascinante de

Há muito mais para ver além da colina.

  Sempre soube que chegaria o dia em que poderia abraçar o horizonte, contemplar e ascender ao céu, espalhar-me entre as nuvens algodoadas e, no silêncio da realidade palpável, e o devaneio, dar asas ao que trago dentro, e voar. Sempre soube que sou uma pessoa com asas. Não sou do tipo que cria raiz. Há que deixar ir. Há que voar. Quem deixar ir dá às pessoas uma escolha, capacita e liberta. Observe o voo de um pássaro. Jamais irá vê-lo carregando, puxando ou arrastando outro pássaro consigo, pois ambos não seriam capazes de voar.   Ambos cairiam ou teriam muita dificuldade para continuar. E aqui estou eu, seguindo no meu voo independente, solo e feliz. Abraçando a cada novo dia o horizonte que se apresenta - e sempre que o horizonte me sinalize o limite do olhar, sei que o mundo ali não se esgota. Estende-se muito além daquilo que eu possa enxergar. E assim é. Ascendi ao céu e voei. Nos últimos oito anos viajei   o mundo. Este mundo tão incrivelmente vasto, que às vezes, quase