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Egito, do caos ao êxtase.

 

Desde os tempos de escola, minha ideia sobre o Egito foi sendo construída através da beleza e importância que o Egito Antigo tem na história da humanidade e sua civilização, pois o avanço do Egito em relação às demais civilizações da época, era notável. Muito antes dos romanos, faraós já edificavam grandes construções dando origem às primeiras versões do que seriam as Pirâmides do Egito.

E em 2018, dando sequencia ao meu calendário exótico de destinos, tive o privilegio de visitar esse país tão impactante e cheio de contrastes. Desde Luxor, onde vida e morte ocupam cada uma sua margem do Rio Nilo, sendo que na margem ocidental está o Vale dos Reis e Rainhas, territórios sonhados por arqueólogos, na margem oriental está o Templo de Luxor e Karnak, que com suas colunatas imensas, que se abrem em praças e se fecham em corredores, são de tirar o folego. 

Em Luxor embarcamos em um pequeno cruzeiro com duração de quatro dias pelo Rio Nilo, fonte de vida e indispensável num país que possui três quartos do seu território em ambiente desértico. E foi uma experiência intensa em todos os sentidos. Observar a paisagem que se desenhava pelo caminho, somado ao silêncio e os tons difusos e quentes das cores do árido deserto, somente se superava ao verde vivo das tamareiras e suas plantações. Na vida que voltava a existir nas mulheres cobertas de negro que timidamente nos acenavam desde a margem. Nas crianças que em coro nos gritavam um sonoro “alo”. Nas casas simples de tijolos de barro e cobertas com folhas secas de palmeira. Na proa, acompanhando o pôr do sol descendo lento, e dourando as águas do Nilo. Um dos mais espetaculares que já testemunhei em minha vida.

Deixando para trás templos e sarcófagos, finalmente chegamos ao Cairo, um lugar tão sonhado e esperado. Mas o Cairo do passado, é hoje uma miragem, porque o que se vê é a pobreza do presente de uma cidade que não se explica. Se vive. 

Uma cidade caótica, pulsante e sem filtros. Uma megalópole vibrante, considerada a sétima maior região metropolitana do mundo, e uma das mais densamente povoadas.

A cidade das pirâmides, únicas sobreviventes das sete maravilhas do mundo, parece estar em permanente construção. Devido à defasagem entre a oferta e a demanda por moradias, assentamentos informais são uma das características marcantes da paisagem urbana. Abrigam a maioria das famílias de baixa renda, e é a principal opção de novas moradias. Uma verdadeira colcha de retalhos, onde se mesclam o ocre dos tijolos com a areia do deserto que está por todas as partes, parecendo reclamar o seu espaço.

No ar, nas ruas, nos poros, narinas, casas e prédios, é ela que confere a cor característica e uniforme que vemos por toda a cidade - há dias em que céu e terra se fundem em uma única cor, geralmente ocorre após uma tempestade de areia vinda do deserto.

O Cairo é conhecido como a cidade dos mil minaretes, embora existam muito mais. E é dos minaretes que partem simultaneamente e se propagam pelo ar as vozes dos almuadens, num chamamento melódico à fé islâmica, convocando os muçulmanos para uma das cinco orações obrigatórias do dia. É uma espécie de ladainha que repete a frase “Allah hu Akbar” (Alá é grande) e atesta fé islâmica: “La ilaha ilia Allah, Muhammad rasul Allah” (Não há outro Deus que não Alá e Maomé é o profeta de Alá).

É a maior cidade do continente africano e a mais populosa do mundo árabe. No Cairo Antigo, região histórica da capital tombada como Patrimônio da Humanidade pela Unesco, há um complexo formado por mais de 600 monumentos que datam do século XII ao XX, como a fortaleza de Saladino, construída em 1183, pelo líder do levante contra os cruzados. A Mesquita de Mohamed Ali, feita em alabastro e no estilo turco-otomano, a Mesquita de Al-Azhar, a mais antiga do país, que data o início de sua construção no ano de 970, e hoje é sede da universidade mais antiga do mundo em atividade. Ali também está o mercado Kahn El Kalili. Divino e imperdível. Um verdadeiro labirinto onde é possível encontrar e comprar de tudo, pois os egípcios são exímios comerciantes. Basta sentar-se em um dos bares e cafés para degustar um karkady, o típico chá feito de hibisco vermelho, ou chá de menta, que em seguida homens, mulheres e crianças oferecem uma enorme variedade de produtos e serviços. E ali mesmo poderá ter seus sapatos lustrados, comprar um lenço, relógio, tâmaras frescas e pechinchar por qualquer bugiganga que lhe ocorra. E tudo isso durante um gole de chá.

Voltando para o centro da cidade, por onde quer que se ande o transito é confuso e perigoso. Não há policiais de transito, nem tão poucos semáforos – em toda cidade do Cairo, há somente cinco semáforos. Talvez isso explique porque os motoristas dirigem com a mão na buzina o tempo todo. Além disso, há muitas carroças com tração animal que dividem espaço com carros velhos, motos, vans e camionetas carregadas de gente. Na prática não existe regra ou código de trânsito. É uma verdadeira loucura, principalmente para o pedestre. Para atravessar uma rua é preciso costurar no meio dos automóveis, até que se logre resultado. É uma travessia perigosa e mortal. Muitos simplesmente se precipitam, pois não há outro jeito. Só mesmo contando com a sorte. E o problema para o pedestre não para por aí, pois as calçadas muitas vezes são inexistentes ou estão cheias de lixo e obstáculos. É preciso estar atento ao caminhar pelo Cairo.

Mas se no trânsito não há policiamento, já na cidade é intensa e pode até assustar. Há soldados do exército armados com fuzis espalhados por vários pontos da cidade. Inclusive, ao cruzarmos o portão de entrada do nosso hotel, o carro que nos levava era inspecionado por cães, e ao ingressarmos no lobby tínhamos que passar obrigatoriamente pelo detector de metais, como aqueles encontrados na área de segurança dos aeroportos. Depois bolsas e mochilas eram revistadas minuciosamente. Sempre. Tudo para nossa própria segurança, diziam eles. Na verdade a cidade está muito bem controlada e protegida contra o terrorismo.

No Cairo dos becos sujos e palácios, encontra-se gente de todas as classes sociais, inclusive famílias que vivem em um cemitério que se estende por mais de dez quilômetros ao longo de uma autoestrada. Ali crianças brincam entre túmulos, roupas recém-lavadas descansam em varais que se sustentam entre lápides, ou seja, é o quintal de casa. Não há um consenso sobre o número oficial de habitantes, mas há estimativas que chegam a 500 mil pessoas. Al'Arafa, ou "o cemitério" foi criado no século VII, quando os árabes conquistaram o Egito.

As construções fúnebres pouco lembram um cemitério ocidental, pois mantem a tradição egípcia de sepultar seus mortos em moradias, o que permitia as famílias enlutadas passarem junto aos seus mortos o luto de 40 dias. E como a ocupação necrópole é oficialmente ilegal, os que ali vivem não dispõe de serviços públicos como esgoto, luz, água potável e coleta de lixo. Mas, ainda assim, esse superpovoamento se explica, pois é grande a dificuldade socioeconômica em conseguir um lar no Cairo.

O que também poderia explicar o porque de Manshiyat Nasser, ou como é mais popularmente conhecida: A Cidade do Lixo. Esse é um assentamento de favelas com uma população estimada em 60.000 habitantes nos arredores das Montanhas Moqattam, na área metropolitana do Cairo. O lugar é coberto de lixo, incluindo ruas e telhados das casas. Esse lixo é coletado na região metropolitana do Cairo, já que a mesma nunca teve um sistema eficiente de coleta de lixo.

Os habitantes, na maioria cristãos coptas, fazem esse "trabalho" a mais de 70 anos. Esses coletores de lixo informais, chamados de Zabbaleen ou "pessoas do lixo", coletam o lixo dos moradores do Cairo em um serviço porta a porta e cobram uma pequena taxa. Depois transportam o lixo em burros ou camionetas até suas casas em Manshiyat Nasser. Uma vez lá, separam o lixo para reciclagem. Um trabalho difícil, cansativo e com alto risco de contaminação que envolve todos os membros de uma família.

E esse é o Cairo com seus conflitos e contrastes. Uma cidade imensa e cheia de problemas. Um lugar fascinante e que desperta sentimentos contraditórios. Uma cidade que não dorme. Que não descansa. Que está sempre em contínuo movimento.

Um Cairo que oscila entre uma vida tradicional, que na sua essência assenta em preceitos religiosos, mas que ao mesmo tempo acolhe os elementos de modernidade que vão chegando. O que inevitavelmente fará com que os cairotas mais instruídos, e os menos favorecidos, confrontem seus desejos mais secretos versus a obediência mais ou menos cega aos preceitos tradicionais da religião islâmica. E para completar o cenário, as profundas desigualdades sociais e econômicas.

De Luxor ao Cairo, essa foi uma experiência marcante. Vou carregá-la comigo para sempre nas imagens e aromas que se misturam livremente em minhas memórias. Esse é o Egito que sempre imaginei desde os livros de historia, mas agora com vida. E uma vida muito mais interessante que a imaginada.

Uma das mais antigas e enigmáticas regiões do globo terrestre. Terra de divergências e conflitos recorrentes de paixões e ódios, mas também de um passado histórico incomparável. Um país de gente hospitaleira. Um lugar onde ninguém me insultou, maltratou ou desrespeitou.

Um país muitas vezes disseminado como sendo viveiro de malfeitores é também terra de gente da paz, boa, culta e generosa. E esse foi o Egito que eu conheci, amei e sempre quero voltar.


Denise Kirsch Oliveda

 

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