Como quem cultiva uma terra árida, sim, às vezes é um negócio difícil escrever o que me ocorre, principalmente quando necessito ultrapassar o vazio da página em branco, conceder vida e liberdade para que as palavras fluam e encontrem seu verdadeiro significado e forma. Porém, desafiador é reconstruir os acontecimentos anteriormente entendidos como fidedignos pela atividade do lembrar, já que o entendimento do passado e realidade pode ser maleável, conforme a minha maneira de lembrar, às vezes me mostrando duas ou mais percepções de um mesmo acontecimento.
Porque essa reconstrução fidedigna do passado se
desfaz no momento em que a memória involuntária surge por um gatilho, ou seja, através
de um cheiro ou uma rua qualquer, por exemplo. Libertada essa memória por si mesma, sem o
controle daquilo que quero lembrar, e em meio a essa disputa entre o lembrado e
o vivido, me pergunto: O que buscar e trazer? O que deixar e esquecer?
Antes de se tornar escrita, a narrativa é vida. E apesar
das tensões que esses conceitos carregam entre si, não há como evitar que em
algum momento a própria escrita se volta para a vida. Escrever serve para
compreender os modos pelos quais me modifico com o tempo, já que essa
consciência se aflora ainda mais ao narrar minha própria história, e ao
modificar a percepção do presente via uma imersão no passado, fundamental para
a minha identidade pessoal e o meu bem estar mental.
E narrar é necessário para que os fatos da vida e do cotidiano
não desapareçam - enquanto o ser humano forjava a sua civilização e dava combate
aos deuses, e procurava entender em que caos estava imerso, ele narrava suas
histórias para que nada se perdesse.
E assim é. A organização dos acontecimentos da minha vida, ocorridos em tempos, modos e lugares diferentes, apresentados aqui no blog em forma de
narrativa, enuncia como percebo a mim, o mundo, as pessoas e as mudanças que me
afetam, porque, tanto a mim, quanto ao mundo, não nos conceberam como algo feito, prontos. Somos interpretáveis e reinterpretáveis inesgotavelmente.
Portanto, escrever é construir uma história. A minha, onde não encontro apenas
a mim mesma, mas encontro a muitos outros. E é no feixe dessas relações que posso,
efetivamente, compreender-me e sobreviver.
E eu gosto de escrever. Sempre gostei. Acho que meu prazer
pela escrita começou no momento em que aprendi a conhecer as letras. Quando
descobri que juntas formam uma ideia. Desde então, passei a usar a escrita como
refúgio. Um lugar habitável e seguro onde posso depositar minhas lembranças,
celebrar a vida e desafiar a dor, pois é na escrita que me apego às memórias,
organizo meu mundo e dou sentido à imensidão de pensamentos que em mim habitam.
É na complexidade desse encontro que consigo me desvencilhar do imenso
emaranhado de fios tortos, partidos e desgastados que é feita minha vida. É
através dessa junção de letras e palavras que me liberto e encontro força,
cumplicidade, intimidade e o acolhimento necessário para dar nome aos meus
sentimentos.
No papel a palavra se cristaliza. E no silêncio desta
escrita dou vida aos meus guardados, acalmo as vontades inesperadas, silencio
as vozes que latejam nas entrelinhas, alivio as tensões do dia a dia e me
desfaço de tudo que me oprime e sufoca. E se por um lado a palavra me conecta
tão profundamente com todos os fragmentos melancólicos e duros da minha vida, por
outro, generosamente me acolhe. E sem exageros me reconcilia com o sorriso,
me devolve o encantamento de evocar pessoas, rever lugares, contar histórias e
expressar meu amor na intenção de compreender e ser compreendida. A cada página
que inicio uma interrogação evidencia o medo do desconhecido. Porém, a cada
página que finalizo, mais me aproximo do caminho que me leva ao desfecho,
caminho esse que só reconhece aquele que já se perdeu por tantos outros.
Escrevo movida pelo que sou e pelo que me tornei ao longo dessa caminhada. Escrevo pelos sentimentos perdidos, os sentimentos ganhos e os sentimentos que espero um dia reencontrar. Escrevo porque acredito que as palavras podem tocar e transformar, mesmo quando muitas coisas escapam da memória e alguns afetos possam ficar perdidos para sempre, ainda assim, os que permanecem, desde os mais importantes, aos mais triviais, todos compõem a estrutura interior que me sustenta. E a escrita se mistura a tudo isso. Serve de amálgama, cola que une e liga momentos e imagens.
Escrever não só
espelha a existência, também a constitui. Ao longo da vida todos nós construímos
nossas próprias ficções íntimas. O Eu que escreve, e o Eu que vive o narrado é o
mesmo, somente em tempos diferentes.
Denise Oliveda
Olá, Denise! Eu aqui a tentar recuperar o hábito de passear pelos blogs que costumava frequentar e de repente me deparo com este seu texto tão perfeito, tão incrivelmente bom! Ao escrever sobre a sua vida, sentimentos, memórias e a consciência do poder formador e transformador das palavras, esteja certa de que espelha em parte a realidade de muitas pessoas. Ao refletir sobre a escrita certamente expressou minhas próprias reflexões sobre esse processo. E fez isso muito bem.
ResponderExcluirGrande abraço!
Jussara, que lindo comentario, muito obrigada!
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