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Nada é “para sempre”

Partindo da certeza de que a morte não combina com nada, e quando confrontada com o amor, a incompatibilidade se torna insuperável. Somo a isso, minha vontade de vida, as sensações incomparáveis que ela me causa e tenho motivos suficientes para objetivar a continuidade desses prazeres, mesmo sabendo que isso pode ser um tanto egoísta, pois quando buscamos que tudo "seja para sempre", buscamos também que aqueles que amamos estejam sempre a nossa disposição, assim como o mobiliário de nossas vidas, como os objetos que conhecemos, usamos e vemos todos os dias.

Mas não é bem assim. O amor, esse intrincado mecanismo de moer vontades, desejos, sonhos e esperanças, onde a aposta é alta e as garantias são poucas, principalmente naquilo que preguiçosamente denominamos felicidade, nunca é para sempre.

Mas saber isso não basta. É preciso viver a realidade sabendo que nada surge livre da dor. Por isso, de nada adianta usar de artifícios com medo da rejeição, perda e frustração.  Isso só faz com que o tempo ande sobre nós, e nos tornemos como as pedras. Sem dor, sem medo e imóveis. 

Sendo assim, não pretendo me tornar uma senhorinha saudosa, daquelas que ficam debruçadas sobre o passado lembrando o que poderia ter sido, e não foi - vale dizer que sempre que ouço alguém falando a respeito de algo que sonha fazer, mas não faz, e não porque não queira, mas porque ainda não despertou para o fato de que intenção é um campo de possibilidades realizáveis, mas que depende única e exclusivamente de nós mesmos, percebo claramente o quanto deixamos de viver.

Por isso vou à luta. Corro atrás do prejuízo reivindicando o momento presente que a vida me contempla e me inunda no agora. Mas, infelizmente há muitas pessoas que não sabem bem onde estão paradas. Para elas o conceito de “para sempre”, atravessa o território-miragem da utopia, impregnado de fantasia, ilusão, delírio e sonhos irrealizáveis. Ou seja, é pura idealização.

Já os mais atentos sabem que o “para sempre”, muitas vezes vive na intensidade dos afetos e ausências que deixamos espalhados por lugares secretos, onde a memória enfatiza a necessidade de reavivá-los. Seja no interior de gavetas – às vezes as gavetas não dizem nada, é preciso cavar mais profundo. Revirar armários, fotografias, filmes domésticos, cartões de natal, confissões registradas num diário, antigos e-mails ou conversas arquivadas no telefone. Um amontoado de memórias, arestas, encontros, desencontros e toda a angústia inexorável de nossas perdas. Porque nada é eterno. Há sinais por todas as partes para nos mostrar que somos mortais. Não há como evitar o processo do fim.

E assim foi. Depois de um ano e meio vivendo em Buenos Aires, recebo uma chamada telefônica de minha irmã. Sem introdução alguma, de supetão me diz: “A mama está doente”.  A frase curta atravessou meus ouvidos de um lado ao outro, deu voltas em minha cabeça e me paralisou. Meu rosto imediatamente ficou desprovido de movimentos e minha voz congelou.

O monólogo que vinha do outro lado da linha me chegava num ritmo caudaloso e crispado de dor, enquanto que meu peito era oprimido por um peso com o qual não conseguia lidar. Eu simplesmente não conseguia falar. E qualquer coisa que dissesse naquele momento seria insuficiente. A dificuldade de comunicação se impunha diante do absurdo do inexorável que me surpreendia, então, só me restava chorar, escutar e pensar no quanto o mapa de nossas tragédias familiares é incerto, pois todos pensávamos que ela estaria entre nós por muito mais tempo.

Minha mãe morreu de câncer em 22 de julho de 2016, quatro meses depois daquela chamada telefônica. Elaborei sua morte por meio de uma pausa. Não a pausa convencional, aquela onde um tempo é concedido aos indivíduos, em que o respeito à dor de quem perde entes queridos é cronometrado pelo relógio, estabelecendo com precisão a hora, o minuto e o segundo em que a dor deve parar. 

Foi uma pausa reivindicada para que eu pudesse estar à altura do que a vida e todas suas armadilhas me exigiriam a partir daí, e acomodar todas as coisas que sempre estiveram fora do lugar entre nós. Sua morte passaria a ser solidão, agora desprovida do eterno movimento de acomodar nossos afetos e desafetos. 


Denise Oliveda 

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